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Glee: anarquia injustiçada, por Henrique Haddefinir

Existe uma linha muito tênue que separa a complexidade louvada, da velada. No mundo dos fãs de séries, as comédias bem sucedidas prec...


Existe uma linha muito tênue que separa a complexidade louvada, da velada. No mundo dos fãs de séries, as comédias bem sucedidas precisam ser transgressoras e os dramas precisam ter milhões de camadas. É o justo, é o certo. Enquanto Will & Grace ficou na vanguarda do sitcom que desfigura a moral americana, The Sopranos inaugurou a era do drama minimalista. Nada de eventos muito eloquentes ou trilhas de suspense no meio de uma briga. Descobriu-se a crueza da dramaturgia “realista”, que muitas vezes representava a dor com o simples silêncio. Dois tons, dois modelos de sucesso.

No meio disso, ficam as “séries intermediárias” e as “séries retardatárias”. As “retardatárias” seguem sem chance de vitórias críticas, existindo pura e simplesmente pelo hábito da audiência. E as “intermediárias” se confundem entre a pouca percepção da crítica especializada e a preguiça de uma fatia do público, mais ávida pelo que é considerado “aprovado” pelos meios formadores de opinião. Esse é o tipo de raciocínio, por exemplo, que faz com que Once Upon a Time seja ridicularizada mesmo que seja tão inteligente em seus melhores momentos. É o tipo de raciocínio que faz com que The Middle tenha uma popularidade medíocre. Com tantos selos de qualidade reconhecidos sendo distribuídos entre comédias transgressoras e dramas minimalistas, quem se importa com o que já nasceu maldito?

Ao criar sua série, evite modelos parecidos com os de Modern Family ou você será imediatamente descartado, evite contos-de-fada, evite tramas adolescentes e principalmente sobrenaturalidades juvenis. Ser fã de coisas como The Vampire Diaries pode doer às vezes, mesmo que o consenso interno (de quem vê a série) seja o de saber exatamente a sagacidade que ela tem a oferecer. Jamais (jamais mesmo) coloque adolescentes cantando nos corredores de um colégio, porque nada do tipo pode ser bom depois que High School Musical aconteceu para o mundo. Assim, quando Glee saiu do papel para a programação da Fox, já saiu precisando vencer uma quantidade impressionante de preconceitos.

Não importa se Dawson's Creek e The OC provaram que séries adolescentes podiam ser interessantes, dramas juvenis são um nível a menos no respeito do mundo “entendido”. Se esses jovens cantam sucessos pop enquanto vivem sua ilusão narrativa, a coisa toda piora. Ainda que nossa experiência como espectadores nos faça intuir que o que dá certo é o que se propõe a coisas novas, nem todos nós estamos dispostos a tentar as novidades com o mesmo coração aberto com que tentamos o que já foi aprovado por terceiros. Glee veio dizer coisas velhas de um jeito único, cantando a nossa cultura enquanto faz isso, mas condenada a ter as fundações de sua existência, destituídas de valor pelo simples exercício da interpretação preguiçosa.

Existem dramaturgias comprometidas com a proximidade com a verdade. Os dramas minimalistas dos quais falei no início do texto são um exemplo disso. Ninguém estabeleceu, entretanto, que a alegoria narrativa também não fosse capaz de ser verdadeira. É mais ou menos como ver a investigação de um assassinato acontecer pelas vias cruas de The Killing, mas também saber que Twin Peaks investigou um crime e nos fez acreditar nisso mesmo que fosse mais vertigem que realidade. Quando Glee surgiu, foi pra ser mais simbologia que reprodução. Assim, usar o gênero musical acabou fazendo todo sentido, já que não há nada mais alegórico que cantar seus sentimentos no meio da rua, na escola, na fila do banco, mesmo que não haja ninguém em volta tocando o fundo instrumental. Os musicais são simbologias, são o exagero da mentira artística, mas podem ser tão catárticos quanto qualquer episódio silencioso de Mad Men.


Então, o espectador tem que ter sentidos compatíveis. Tanto para séries adolescentes quanto para canções surgindo do meio do nada. Se essa não é sua praia, Glee não vai te agradar. No entanto, existe uma diferença entre você ser incompatível com um gênero e o produto dele ser ruim sob qualquer interpretação. Procedurais não me descem bem, mas não posso dizer que Castle ou Bones sejam porcarias simplesmente porque não me envolvo com suas formas de contar histórias. Se eu disser que Gossip Girl é uma porcaria eu vou estar mais ciente do que estou dizendo, porque séries adolescentes são meu lance. Assim, o repúdio ao programa desliza entre o julgamento musical e o narrativo. Glee é maldita pelo que canta e pelo que conta, sobretudo porque valoriza cultura pop (considerada descartável pelos círculos eruditos) e explora dramas adolescentes (considerados fracos pelos círculos mais exigentes).

Ainda assim, os anjos estão nos detalhes... Glee cava sua relevância no mundo das tramas juvenis tentando novos olhares. Nessa série, a beleza e a popularidade estão em segundo plano. Ela se joga muito mais nas influências de Freaks and Geeks do que de One Three Hill. Aqui quem tem voz é underdog, o excluído, o desprovido de empatia. E quem já foi um deles sabe que na maioria dos casos, o melhor refúgio desse grupo é a arte. Daí, Ryan Murphy cria uma série que se foca na formação de um coral de escola, composto quase que totalmente por jovens que não teriam portas abertas por conta de sua aparência ou carisma. Ter um talento nunca foi o suficiente para ser bem sucedido e quem só tem ele (faltando beleza e sorte no pacote) sabe como é duro saber-se tão relevante, sem ter a chance de mostrar. Amor e dom, quando recolhidos, são tão nocivos quanto um câncer.

Porém, mesmo tomada de losers, Glee não é uma série que se vitimiza. Sua personagem com síndrome de down tem ares de vilã e a heroína central é egoísta, egocêntrica e manipuladora. Ainda que a série lance mão dos plots de praxe, ela não se expressa por eles com cores frias. Gravidez, primeira vez, amor não correspondido, homossexualidade... está tudo ali, mas se a primeira impressão faz parecer que tudo é mais do mesmo, uma ouvidinha atenta no texto deixa claro que o propósito de Glee não é agradar a família americana e sim, promover o debate acerca de sérias transformações no sistema moral do país.

Apoiada num corajoso senso de transgressão, Glee fala sobre os assuntos mais delicados usando de deboche, sarcasmo, ironia, entrelinhas, todas elas pouco comuns no universo sempre didático e direto das séries teen. Reforçando a natureza de sua criação em quase todos os seus argumentos: não deve-se nunca haver necessidade de desculpar-se pelo que se é, ou ter medo de sonhar mesmo num mundo onde as realizações exijam cor, peso e heterossexualidade vigentes para acontecer. Assim, durante a série, vimos gays sendo apoiados por pais amorosos, gordos sendo confiantes, deficientes sendo otimistas... todo tipo de contra-correnteza que não se apoia apenas no “olha como fazemos diferentes”, mas sim no “natural é acontecer assim, sem alarde e sem vaidade”. Em 5% do tempo, Unique aparece fazendo drama na tela. Nos outros 95% , sua transsexualidade é tão corriqueira quanto a maldade latente de uma líder de torcida.

A “reeducação” social promovida pela série jamais foi burocrática, entretanto. Ninguém tem medo de xingar a menina com síndrome de down, até porque ela xinga qualquer um sem pensar duas vezes. O texto faz auto-referência, citações pop, disfarça obscenidades no contexto e é falado de modo rápido e certeiro, como se saído da escola Gilmore Girls de dicção. Nada passa batido pelos diálogos, nem mesmo os erros que a própria série cometeu em seus 5 anos de existência. Porém, não se pode exigir que nada disso aconteça convencionalmente. Glee é um musical e tal qual, ele é alegoria castiça, um tipo de dramaturgia que se permite a flexão da realidade em níveis ainda mais panorâmicos. O barato de assistir a série está na distorção constante que a envolve. A distorção de valores que permite um episódio sobre ateísmo, a distorção de moral que permite beijos e transas gays acontecendo sem reservas e poesias, a distorção de tradições que decide que o transsexual do grupo interpretará Maria no Auto de Natal, a distorção musical que mistura Britney Spears com Aerosmith. Glee é um conceito anarquista, sendo julgado pela crítica como se fosse do partido conservador.

E se tudo isso ainda é pouco, em 5 temporadas, a série entregou uma carreira musical de uma competência impressionante, fazendo música da melhor qualidade, indo de Madonna à Beatles de fomas ousadas e instigantes, e fazendo pela cultura pop o que nenhum produto do gênero jamais fez  em toda a história da televisão. Cada canção sendo produzida com segurança, criatividade e humor. Algumas das versões musicais da série são muito mais encorpadas e delicadas que os próprios originais. Seus mash-ups (a junção de duas canções completamente diferentes), são históricos. Seus episódios-tributo são marcos da manipulação da cultura pop... Se dê ao trabalho de ouvir a versão da série para Shake It Out (de Florence + The Machine) e vai saber do que estou falando. Ouça o que eles fizeram com Someone Like You de Adele, e entenderá o compromisso da série com o inesperado. Eles transformam hits da internet em catarse, transformam música mercadológica em lirismo, unem clássico e contemporâneo com uma organicidade impressionante. Querem dois pequenos exemplos? Nos vídeos abaixo, temos a junção de Philip Phillips com Simon & Garfunkel's e a junção de Gloria Gaynior com Destiny's Child.



Nada, porém, muda mais a maneira de encarar a execução dessas canções do que acompanhar a maneira tão catártica com a qual elas vão sendo inseridas no contexto dos episódios. Glee é muito especial sob uma série de aspectos e não importa se no seu auge ou na sua rotina, a série ainda é capaz de coisas maravilhosas, de ousadias impensáveis, de musicalidades comoventes... Ela não é perfeita, mas é linda. Não é infalível, mas é sempre provocante. E a única parte boa dela ser tão ridicularizada pelos leigos, é que a experiência de ser fã mesmo sendo ocasionalmente dolorosa, também acaba sendo loucamente intensa. Gostar de Glee é forçar-se contra as expectativas tacanhas do mundo... Tal qual os personagens, os fãs são sonhadores determinados, que mesmo sendo jogados em lixeiras, seguem experimentando a beleza daquilo que só olhos muito sensíveis podem ver.


Guest Post Este texto foi escrito por um brilhante e ilustre autor convidado, e faz parte de uma série de posts sobre as séries favoritas e os danos que elas causam no coração da gente.

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O Autor
Henrique Haddefinir  é de Rio das Ostras. É dramaturgo, bilheteiro e ator. Colabora com o Cartas para Pi, com o Série Maníacos, e com o Omelete. É amante de Glee e da escrita de Ryan Murphy. Gosta de novela e não se junta à correnteza na hora de fazer suas críticas. Você pode encontrá-lo em seu Twitter falando de suas séries preferidas e dos capítulos de suas novelas favoritas em @Haddefinir.

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Postar um comentário Comentários via BLOGGER (6) Comentários via DISQUS

  1. Chorei ao ler seu texto Henrique. É ótimo ver q não sou o único a ver o quão maravilhoso é Glee.
    Não sei nem o q escrever mais, só quero agradecer. Mt obg por esse texto

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  2. Então eu não fui a única a chorar lendo esse texto. Uma das melhores críticas que eu já li sobre Glee. Bem escrita, com referências à outras séries, um texto realmente muito bom de ser lido... Você, como um fã da série, sabe o poder que a mesma pode ter sobre quem a assiste. Eu, sem sombra de dúvidas, comecei a repensar sobre vários assuntos abordados em Glee depois que comecei à assistí-la. Glee prega a tolerância e a aceitação e, principalmente o amor. Acho que isso tá em falta na sociedade, por isso é tão bom de ver nas telas.

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  3. Olha, eu achei um texto bem interessante e concordaria com o que foi dito se estivéssemos na primeira, tavez segunda temporada. Acho que atualmente é uma série boba e forçada, fugindo muito da realidade (e sou uma pessoa que acompanha a série desde início).

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  4. seu texto me emocionou!exatamente assim que eu me sinto acompanhando glee todos esses anos.obrigado.

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